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Zona Rural de Santa Edwiges, SP

Ano de 2002

Pela décima vez, o telefone chamou até desligar. Era pra ela sentir as contrações do parto só dali a três semanas, mas elas já estavam ali, fosse por algum erro de cálculo ou por qualquer outro motivo, a sua filha estava querendo nascer e ela estava ali, isolada naquela casa de campo. A clínica onde ela teria o bebê, ficava na mesma cidade, mas a vinte e seis quilômetros dali, então bastava chamar o motorista e pedir que ele a levasse, mas o que ela queria mesmo, era ter o marido do lado dela, como tinham combinado.

Mariana sabia que Orlando era um homem muito ocupado e extremamente dedicado ao seu trabalho na fábrica de licores que ele mesmo fundou e transformou na maior do Brasil. Ninguém superava a Licores Hermann em qualidade, variedade e preço e isso fazia com que a empresa dominasse o mercado nacional de licores. Ela insistia que ele precisava dividir as suas funções com outros colaboradores, mas ele insistia que só o olhar e o toque de quem entendia o trabalho que foi feito desde o início, era capaz de manter o nível das operações, então ele mesmo devia se encarregar dos contratos e parcerias, logo, vivia viajando a trabalho como estava naquele momento.

O telefone dela tocou, enquanto a empregada arrumava as coisas dela para irem ao hospital e, atendendo o celular, viu que era Orlando, lhe perguntando se tinha acontecido algo. Pela voz dele, ela pode sentir o quanto ele ficou chateado por não poder estar com ela naquele momento, mas ele disse que, assim que terminasse a palestra que ia dar naquela tarde, ele pegaria o vôo de volta para casa e tiraria um tempo de licença para ficar com elas, então precisou desligar, para começar outra reunião.

Com a ajuda da empregada, ela foi até o carro, que estava próximo a entrada da casa a esperando e, se acomodando no banco de trás, deu a ordem para o motorista dar a partida. A casa de campo deles ficava na área rural da cidade de Santa Edwiges, interior de São Paulo, cidade que cresceu em volta da fábrica de licores Hermann. Mesmo com dores, Mariana não podia deixar de admirar a paisagem do caminho, onde algumas nascentes e lagoas davam um tom bucólico e charmoso ao local. Seria um lugar bem legal para a sua filha crescer e ela só esperava que a sua chegada tocasse o coração de Orlando, ao ponto dele frear um pouco a compulsão pelo trabalho.

Um toque de chamada a tirou de seus pensamentos e olhando no visor externo do seu Samsung SGH-T100, ela viu que era Orlando, então abriu o celular e atendeu.

— Já saíram de casa, amor? — o homem perguntou, do outro lado da linha.

— Acabamos de atravessar a ponte do Rio Pardo — ela respondeu, sentindo-se feliz por ouvir a voz dele.

— Sobre a palestra… — ele começou a falar, mas o sinal do telefone falhou. Em seu íntimo, ela torceu para que ele fosse lhe dizer que a palestra tinha sido cancelada e que ele estava à caminho do aeroporto para encontrá-la no hospital, mas o sinal foi restabelecido e as esperanças dela foram frustradas — … os investidores pediram mais duas, para amanhã e depois. Vão querer abrir duas fábricas dos licores Hermann aqui na Argentina, então é uma oportunidade que eu não posso perder.

— Já o nascimento e os primeiros dias da sua filha, você pode perder — ela disse, chateada.

— Mari, você sabe que tudo o que eu faço é para vocês — ele tentou contemporizar —, e abrir fábricas aqui significa mais lucro.

— Mais viagens e mais trabalho também, Orlando — ela disse, sem conseguir conter o descontentamento —, acontece que nós não precisamos de mais lucro, só precisávamos de você aqui. No entanto, boa sorte para você nos negócios aí, e quando der, apareça para conhecer a sua filha!

Sem deixar que ele dissesse mais nada, ela encerrou a ligação e, com lágrimas nos olhos, desligou também o aparelho. Alguns minutos mais tarde, ela estava em uma cadeira de rodas, sendo levada às pressas para a sala de operações onde o parto seria feito. A bolsa tinha estourado e havia dilatação suficiente, então optaram por fazer o parto normal imediatamente, já que já tinha passado das trinta e sete semanas de gestação. Após um parto tranquilo e bem sucedido, a menina nasceu, com mais de três quilos. A pele da pequenina era negra como a da sua mãe, porém, um pouco mais clara devido à mistura.

Mariana não quis ligar o telefone enquanto esteve na clínica, mesmo depois que o motorista disse que Orlando pediu que ela o atendesse. Ela pediu que o dissesse que estava tudo bem com ela e com a bebê e que só conversariam quando ele voltasse para casa. Elas precisaram ficar mais um dia na clínica em observação e, no dia seguinte, estavam prontas para voltarem para a casa de campo. Estava chovendo desde a noite anterior e o motorista disse que as estradas não estavam nas melhores condições, então perguntou se ela não preferia ficar em um hotel, até que a situação melhorasse, mas ela queria ir para casa, mesmo sabendo que a sua cunhada, que tinha ficado viúva recentemente, estava lá.

Suzanne era uma mulher fútil e arrogante, que tinha feito de tudo para atrapalhar o relacionamento dela e de Orlando enquanto ainda namoravam e que não escondia que não gostava dela. O nascimento da filha deles era a prova de que os esforços da megera tinham sido frustrados e ela iria querer ver a cara dela agora. Após colocar a pequena no cesto para que ela ficasse mais confortável, ela ligou o celular, enquanto o motorista dava a partida. As mais de quarenta chamadas não atendidas de Orlando a fizeram ficar com pena, mas sabendo que foram uma espécie de punição para ele, ela apenas as ignorou e, ajustando o seu cinto de segurança, puxou o cesto da bebê para o seu colo. A estrada estava realmente bem esburacada e o carro, mesmo indo devagar, balançava bastante, mas como o parto tinha sido normal, e a sua filha estava confortável em seu cesto, ela estava tranquila.

— O seu pai me deu essa pulseira no dia em que me pediu em casamento, mas eu ajustei ela para o seu bracinho — ela disse para a pequena, ignorando o fato dela estar dormindo e colocando o objeto, que tinha um pingente de sol, no braço dela —, o seu pai e eu decidimos te chamar de Sol, pensando em viagem que fizemos para a praia junto com os alunos da escola onde eu lecionava. Começou a chover quando estávamos na praia e eu disse para os alunos desenharem sóis na areia para parar com a chuva. Ele estava em um dos raros dias de folga que tirava e achou engraçado a minha superstição. Agora esse pingente é seu, porque você é o nosso solzinho, que ilumina tudo.

O carro parou de repente e o motorista disse que o freio não estava funcionando, por isso ele parou, e pediu que ficasse no carro enquanto ele olhava o que era. A chuva tinha diminuído e se transformado apenas em uma garoa. O carro estava em cima da ponte que cruzava o Rio Pardo e o motorista disse que o cabo de freio tinha se partido e que ele iria ligar pedindo para levarem outro carro para buscá-la. As águas estavam agitadas e o nível parecia subir aos poucos, mas ela não podia sair na chuva com a bebê, então apenas esperou e torceu para que o outro carro chegasse logo.

O que se seguiu então foi muito rápido. Ela sentiu o carro balançar e viu o motorista desesperado correndo na sua direção, mas antes que ele pudesse chegar até ela, uma grande onda o acertou violentamente, jogando-o no rio. A chuva tinha aumentado de repente e o nível do rio estava sobre a ponte, arrastando o carro aos poucos. Uma tromba d'água vindo da parte alta do rio acertou o carro, arrastando-o até o rio também e, desesperada, ela viu a água entrar no veículo e tentou destravar o cinto de segurança, mas não conseguiu, então, vendo que o cesto da filha boiava na água, ela fez o que achou que deveria fazer. Com lágrimas nos olhos, ela deu um último beijo na testa da bebê e colocou o cesto para fora da janela, deixando-o ser levado pela correnteza forte do rio e ficou olhando, enquanto a água tomava todo o carro.

Algumas horas depois, o telefone de Orlando tocou, lhe dando a pior notícia de sua vida. Uma notícia que o fez abrir mão de outras palestras que faria na Argentina e voltar para casa. O corpo de Mariana foi encontrado no carro e o do motorista, preso em alguns galhos a vários metros do local, mas o corpo de sua filha não foi encontrado. Muitas buscas foram feitas, por bombeiros e por pessoas contratadas por ele, mas não foi possível encontrar a pequena Sol. Como resultado da tragédia, Orlando fez o que devia ter feito antes daquilo acontecer e designou outros profissionais para cuidarem das tarefas que ele era responsável, mas sem a esposa e a filha que não chegou a conhecer, ele se tornou um homem recluso em sua casa de campo, bebendo e chorando pela perda delas todas as noites, esperando que a morte o levasse também.

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